Exposição de motivos
Nos últimos anos, a democracia em Portugal tem sido colocada perante o desafio de conseguir levar a cabo um conjunto de reformas que, de forma integrada, consigam garantir uma maior transparência do sistema político, um maior envolvimento dos cidadãos na vida pública, um combate eficaz da corrupção e um aprofundamento do compromisso dos titulares de cargos políticos e altos cargos públicos com a salvaguarda do interesse público.
Foi precisamente com esse intuito que na XIII Legislatura, se aprovou a Lei n.º 52/2019, de 31 de julho, que consagrou um conjunto de importantes avanços tais como a criação de uma declaração única de rendimentos, património, interesses, incompatibilidades e impedimentos, o alargamento dos impedimentos aplicáveis aos titulares de cargos políticos e altos cargos públicos (durante o mandato e após o seu fim), a criação de mecanismos de transparência relativamente aos contratos em que participem familiares próximos, às ofertas e hospitalidades e aos registos de interesses e a previsão de obrigatoriedade de certas entidades públicas aprovarem códigos de conduta.
Foi, também, com tal intuito que na XIV Legislatura por via da ação do PAN se conseguiu um conjunto de avanços importantes no sentido de assegurar uma maior prevenção dos conflitos de interesses e um aprofundamento da transparência no exercício de cargos políticos e de altos cargos públicos, dos quais se destacam a limitação das ligações dos deputados aos clubes de futebol (Lei n.º 53/2021, de 12 de agosto), o alargamento das obrigações declarativas relativamente à pertença entidades de natureza associativa (Lei n.º 58/2021, de 18 de agosto), a aprovação de um novo modelo de nomeação do conselho de administração do Banco de Portugal que limita grandemente “as portas giratórias” que têm existido entre esta instituição e a banca comercial e consultoras financeiras (Lei n.º 73/2020, de 17 de novembro) ou a criminalização do enriquecimento injustificado/ocultação de enriquecimento (Lei n.º 4/2022, de 6 de janeiro).
Dando cumprimento ao disposto no artigo 117.º da Constituição, o regime jurídico do exercício de funções por titulares de cargos políticos e altos cargos públicos, define as incompatibilidades e impedimentos aplicáveis a estes titulares, as consequências para o seu incumprimento e claro está os mecanismos de transparência existentes para prevenir tais situações. Conforme demonstram os avanços dados na XIV Legislatura, este regime jurídico deverá sofrer ajustes e melhorias pontuais que, sem pôr em causa o essencial da sua estrutura e modelo-base, assegurem a sua adequação à realidade, às exigências da sociedade civil e às exigências de uma melhor defesa do interesse público.
Ciente desta necessidade de adequação à realidade, o Conselho Consultivo da Procuradoria-Geral da República, em parecer datado de 27 de maio de 2021, dirigiu-se à Assembleia da República solicitando uma reponderação cuidadosa de dois aspetos da Lei n.º 52/2019, de 31 de julho, no âmbito dos impedimentos aplicáveis aos titulares de cargos políticos e de altos cargos públicos e em especial dos que constam do número 4, do artigo 9.º, que seriam um “fator de obscuridade”. Por um lado, o primeiro aspeto prende-se com a menção à pessoa coletiva, constante do número 4, do artigo 9.º, que o Conselho Consultivo é um critério formal “que vai longe, no caso do Estado, em face da extrema multiplicidade e heterogeneidade dos seus órgãos, mas que também pode manifestar-se redutor, se pensarmos, por exemplo, nos serviços personalizados do Estado que, não obstante disporem de personalidade jurídica, encontram-se por vezes, sob intensa superintendência e tutela de mérito do Governo”. Conforme referiu o referido Conselho Consultivo, daqui decorrem inibições em que o titular do cargo político “embora inserido no aparelho de Estado” se encontra “muito longe de poder influenciar diretamente o desfecho de procedimentos que lhe são absolutamente alheios”. Por outro lado, o segundo aspeto prende-se com o facto de os “procedimentos de contratação pública” serem o eixo central das regras relativas a impedimentos previstas no artigo 9.º (e em especial nos números 1, alínea a), e 4), o que (ainda que não afaste a aplicação da garantias de imparcialidade previstas no Código do Procedimento Administrativo) deixa de fora as subvenções, incentivos ou outros apoios financeiros públicos outorgados por ato administrativo – que, desta forma, só ficarão vedados nos casos previstos no regime aplicável após cessação de funções, previsto no artigo 10.º. Esta situação, conforme sublinhou o mencionado parecer, “deixa a fronteira de legalidade ao sabor de contingências imprevisíveis, como seja a atribuição de subvenções por ato administrativo ou no cumprimento de um contrato”.
Para o PAN este apelo do Conselho Consultivo da Procuradoria-Geral da República adquire especial importância, dado que versa sobre um impedimento que tem o objetivo de assegurar a imparcialidade e independência do titular de cargo político, impedindo que este desvie o exercício do poder em proveito do seu cônjuge ou unido de facto, ou prevenir decisões influenciadas por temor reverencial. Além do mais, no período 2021/2030, através do Plano de Recuperação e Resiliência, do Portugal 2020 e do Portugal 2030, vai obrigar o nosso país a executar quase 46 mil milhões de euros em 10 anos, sendo que muitas das subvenções, incentivos ou outros apoios financeiros públicos são outorgados por ato administrativo, mas que por insuficiência do quadro legal estão fora do âmbito das regras sobre impedimentos previstos no artigo 9.º da Lei n.º 52/2019, de 31 de julho.
Assim, dando cumprimento às observações apresentadas pelo Conselho Consultivo da Procuradoria-Geral da República, com a presente iniciativa o PAN pretende introduzir alterações ao artigo 9.º da Lei n.º 52/2019, de 31 de julho. Propõe-se que, tal como já sucede no âmbito dos procedimentos de contratação pública, as empresas com participação relevante de um titular de cargo político ou de alto cargo público não possam participar em procedimentos de atribuição de subvenção pública, incentivos financeiros, sistemas de incentivos ou benefícios fiscais por via de ato administrativo e que, no caso de empresas com participação relevante dos cônjuges ou unidos de facto, o impedimento se aplique em procedimentos em que cujo processo de formação, apreciação ou decisão intervenha o seu cônjuge ou unido de facto ou órgãos, serviços ou unidades orgânicas colocados sob sua direção, superintendência, tutela ou outra forma de direta influência. Importa sublinhar que as alterações que se propõem com a presente iniciativa seguem de perto as soluções já em vigor no âmbito do artigo 8.º da Lei n.º 52/2019, de 31 de julho, e no artigo 24.º Lei Geral do Trabalho em Funções Públicas, aprovada pela Lei n.º 35/2014, de 20 de junho.
Aproveitando o ensejo propõe-se, ainda, a consagração da obrigatoriedade de publicitação dos pedidos de escusa por parte de titulares de cargos políticos e altos cargos públicos em processos de decisão no âmbito do exercício das respetivas funções, devido a conflitos de interesse dos próprios na matéria em causa, em modo acessível, online, gratuito, integral e atualizado. Se é certo que por si só um conflito de interesses não acarreta um comportamento impróprio, não menos certo é que uma legislação demasiado permissiva ou que seja aplicada de forma pouco eficaz poderá criar zonas “cinzentas” da interpretação da lei, que permitam o acesso de familiares diretos de responsáveis políticos ou de altos cargos públicos a fundos, sejam eles públicos ou comunitários e consequentemente, impondo-se a questão se o que prevaleceu foi o interesse privado ou público. Somos de entendimento que a consagração de um avanço legal como este poderá dar um contributo importante para garantir a eficácia da legislação em vigor em matéria de conflitos de interesse, já que, sem prejuízo de uma regulamentação do lobbying, permitirá a qualquer cidadão fazer o rastreamento e escrutínio deste tipo de situações em que se devem verificar pedidos de escusa por parte do titular do cargo político ou alto cargo público – algo que assegura, simultaneamente, por via da transparência a sua proteção face a informações que se possam revelar infundadas ou incorretas no âmbito deste tipo de situações.
Pelo exposto, e ao abrigo das disposições constitucionais e regimentais aplicáveis, a abaixo assinada Deputada Única do PESSOAS-ANIMAIS-NATUREZA, apresenta o seguinte Projeto de Lei:
Artigo 1.º
A presente lei procede à quarta alteração à Lei n.º 52/2019, de 31 de julho, que aprova o regime de exercício de funções por titulares de cargos políticos e altos cargos públicos, alterada pela Lei n.º 69/2020, de 9 de novembro, pela Lei n.º 58/2021, de 18 de agosto, e pela Lei n.º 4/2022, de 6 de janeiro.
Artigo 2.º
Alteração à Lei n.º 52/2019, de 31 de julho
Os artigos 8.º e 9.º da Lei n.º 52/2019, de 31 de julho, passam a ter a seguinte redação:
«Artigo 8.º
[…]
1 – […]:
- […];
- […];
- […].
2 – […].
3 – Quando no âmbito do exercício das respetivas competências, o titular de cargo mencionado nos números anteriores solicitar escusa com fundamento em causa de impedimento anteriormente referida, o respetivo pedido de dispensa deverá ser disponibilizado, em acesso integral e gratuito, em secção autónoma no sítio na Internet da respetiva entidade pública.
Artigo 9.º
[…]
2 – Os titulares de cargos políticos ou de altos cargos públicos de âmbito nacional, por si ou nas sociedades em que exerçam funções de gestão, e as sociedades por si detidas em percentagem superior a 10 % do respetivo capital social, ou cuja percentagem de capital detida seja superior a 50 000 (euro), não podem:
- a) Participar em procedimentos de contratação pública ou de atribuição de subvenção pública, incentivos financeiros, sistemas de incentivos ou benefícios fiscais por via de ato administrativo;
- b) Intervir como consultor, especialista, técnico ou mediador, por qualquer forma, em atos relacionados com os procedimentos referidos na alínea anterior.
3 – […].
4 – O regime referido no n.º 2 aplica-se ainda aos seus cônjuges que não se encontrem separados de pessoas e bens, ou a pessoa com quem vivam em união de facto, em relação aos procedimentos referidos na alínea a), do número 2, em cujo processo de formação, apreciação ou decisão intervenha o seu cônjuge ou unido de facto ou órgãos, serviços ou unidades orgânicas colocados sob sua direção, superintendência, tutela ou outra forma de direta influência.
5 – O regime dos n.ºs 2 a 4 aplica-se aos demais titulares de cargos políticos e altos cargos públicos de âmbito regional ou local não referidos no n.º 2, aos seus cônjuges e unidos de facto e respetivas sociedades, em relação a procedimentos referidos na alínea a), do número 2, desenvolvidos pela pessoa coletiva regional ou local de cujos órgãos façam parte.
6 – […]:
- […];
- […];
- […];
- […].
7 – […].
8 – […].
9 – […]:
- […];
- […];
- […].
10 – […].
11 – […].
12 – Quando no âmbito do exercício das respetivas competências, o titular de cargo mencionado nos números anteriores solicitar escusa com fundamento em causa de impedimento anteriormente referida ou em conflito de interesses, o respetivo pedido de dispensa deverá ser disponibilizado, em acesso integral e gratuito, em secção autónoma no sítio na Internet da respetiva entidade pública.»
Artigo 3.º
Entrada em vigor
A presente lei entra em vigor no prazo de 60 dias após a sua publicação.
Assembleia da República, Palácio de São Bento, 18 de outubro de 2022
A Deputada,
Inês de Sousa Real