Parlamento

Recomenda a revisão da Concordata celebrada entre a Santa Sé e a República Portuguesa e a criação de uma Comissão de Reparação para indemnização das vítimas de crimes sexuais

Exposição de motivos

A Comissão Independente para o Estudo dos Abusos Sexuais de Crianças na Igreja Católica tornou públicas, a 13 de fevereiro de 2023, as conclusões do trabalho realizado em 2022, concretamente do estudo dos abusos sexuais de crianças por membros e/ou colaboradores da Igreja, entre os anos 1950 e 2022, com vista a “um melhor conhecimento do passado e adequada ação preventiva e de intervenção futura”.[1]

Na apresentação dos dados sobre os abusos sexuais cometidos na Igreja Católica, a Comissão Independente revelou alguns depoimentos que chegaram ao organismo sobre os abusos sexuais ocorridos no seio da Igreja Católica portuguesa, de situações extremamente traumáticas e dolorosas e que, em muitos casos, ocorreram há décadas.

De entre os 512 testemunhos validados recebidos ao longo do ano,  identificaram-se 4815 vítimas. Um extenso número de testemunhos que, infelizmente, não são excepção. As Conferências Episcopais de vários países, por vezes em ação conjunta com alguns governos, também analisaram este flagelo.

Na Alemanha, Austrália e em França, a Igreja Católica também foi confrontada com a divulgação de casos de abusos sexuais a menores e apresentaram diferentes respostas.[2]

Em França, em outubro de 2021, a Comissão Independente francesa publicou um relatório que dava conta de que em 70 anos terão sido abusadas 330 mil pessoas no seio da Igreja Católica no país. A divulgação desses dados gerou uma onda de choque na sociedade francesa, o que resultou na aplicação, por parte da Igreja, de um processo de reconhecimento da qualidade de vítima e de reparação dos danos que a mesma sofreu, incluindo casos que já haviam prescrito ou em que o agressor já tinha falecido. Para o efeito, foram criadas a Instância Nacional Independente de Reconhecimento e Reparação, que tinha como função a identificação e futura indemnização das vítimas e a Comissão de Reconhecimento e Reparação, que estava encarregada de fazer uma mediação entre as vítimas e os institutos religiosos para eventuais indemnizações.

No início de fevereiro deste ano, o presidente da Comissão Independente francesa, Jean-Marc Sauvé, referiu que foram recebidos cerca de 1.800 pedidos de indemnização. A 30 de setembro de 2022, a Instância Nacional Independente de Reconhecimento e Reparação tinha já contabilizado 1.004 pedidos de indemnização, 45 dos quais já tinham sido decididos, levando a que as vítimas já estivessem a ser indemnizadas. Cerca de um ano após a divulgação do relatório, a Comissão de Reconhecimento e Reparação com 450 processos relevantes, já tinha ressarcido 15 vítimas, com montantes entre os 50 mil e os 60 mil euros.

Ainda que o funcionamento dos organismos identificados esteja longe do ideal segundo os testemunhos de algumas vítimas, que sofreram impactos devastadores, e para os quais as indemnizações por vezes não supriram os gastos do apoio psicológico que necessitam, é indiscutível que foram dados passos muito mais significativos do que em Portugal.

Para além da questão da indemnização, existem nove grupos de trabalho na Conferência Episcopal dedicada ao estudo dos abusos sexuais em França para analisar os passos para o futuro. Um dos temas que deveria ser analisado por solicitação da Comissão independente será o segredo de confissão que ainda se mostra um problema no que diz respeito aos crimes de abuso sexual de menores.

Por sua vez, na Alemanha, a Conferência Episcopal encomendou um estudo universitário, centrado nos arquivos históricos de todo o país desde o final da Segunda Guerra Mundial. A divulgação do estudo abriu um espaço para que a Igreja Católica alemã começasse a discutir reformas no seio da instituição, tais como a possibilidade de celebrar casamentos entre pessoas do mesmo sexo e o fim do celibato.

Também a Austrália abriu um inquérito para apurar os impactos dos abusos sexuais em todas as esferas da sociedade, mas, contrariamente à comissão alemã e francesa, a iniciativa partiu do governo, que abriu um inquérito parlamentar realizado pela Royal Commission, com a possibilidade de os seus resultados serem remetidos diretamente para o sistema judicial. O primeiro-ministro da Austrália garantiu que iria cumprir as recomendações resultantes do estudo, tal como a criação de um gabinete nacional para a segurança das crianças e, por outro lado, a Igreja Católica aceitou instituir um esquema de compensações financeiras às vítimas que tinham sido abusadas. Em 2017, já tinham sido pagos 213 milhões de dólares australianos (cerca de 139 milhões de euros), sendo que cada pessoa pode receber no máximo 150 mil dólares australianos (aproximadamente 98 mil euros).[3]

Em Portugal, no relatório final da Comissão Independente foram, igualmente, deixadas algumas conclusões e recomendações à Igreja e à sociedade civil. Esperava-se que estas recomendações fossem tidas em conta na resposta da Conferência Episcopal Portuguesa, com vista a analisar os acontecimentos, a travar a ocorrência de abusos sexuais na Igreja.

No entanto, no passado dia 3 de Março, em reação às conclusões expressas no relatório, o presidente da Conferência Episcopal Portuguesa, D. José Ornelas, que anteriormente garantia que haveria uma política de “tolerância zero”, recusou, desta feita, a possibilidade de afastamento imediato de padres denunciados como abusadores e dos bispos que alegadamente os tenham encoberto e não demonstrou ainda qualquer predisposição ou abertura para indemnizar as vítimas, ao contrário do que foi feito em alguns países.

O afastamento preventivo dos sacerdotes denunciados por abusos sexuais e dos bispos que terão encoberto essas atividades, que seria a medida mais urgente, foi também afastada pelo cardeal patriarca de Lisboa, D. Manuel Clemente, referindo que “é uma pena muito grave, é a mais grave que a Santa Sé poderá dar e é a Santa Sé que a poderá dar”.

Face a este posicionamento, torna-se claro que é necessária a intervenção do Estado para a proteção das vítimas, presentes e futuras.

Por tal, mostra-se necessária que a Concordata celebrada entre a Santa Sé e a República Portuguesa, onde se afirma que “as profundas relações históricas entre a Igreja Católica e Portugal e tendo em vista as mútuas responsabilidades que os vinculam, no âmbito da liberdade religiosa, ao serviço em prol do bem comum e. ao empenho na construção de uma sociedade que promova a dignidade da pessoa humana, a justiça e a paz” seja revista e renegociada, para que os próprios princípios nela constante sejam cumpridos.

A Concordata de 2004 foi celebrada na medida em que se reconheceu que a Concordata de 7 de Maio de 1940, entre a República Portuguesa e a Santa Sé, “e a sua aplicação contribuíram de maneira relevante para reforçar os seus laços históricos e para consolidar a actividade da Igreja Católica em Portugal em benefício dos seus fiéis e da comunidade portuguesa em geral; entendendo que se toma necessária uma actualização em virtude das profundas transformações ocorridas nos planos nacional e internacional: de modo particular, pelo que se refere ao ordenamento jurídico português, a nova Constituição democrática, aberta a normas do direito comunitário” e do direito internacional contemporâneo, e, no âmbito da Igreja, a evolução das suas relações com a comunidade política”(sublinhado nosso).

Ora, torna-se claro que também agora deverá ser actualizada a Concordata anteriormente celebrada para proteção das vítimas e para proteção dos direitos humanos, em particular do Direito das Crianças.

E esta revisão tem que garantir a laicização efectiva do Estado, não subordinando à discricionariedade da instituição situações de violações gritantes de direitos humanos, em particular dos direitos de crianças e jovens.

No entanto, a sociedade portuguesa no seu todo tem a consciência de que os abusos sexuais de crianças excedem em muito os praticados na Igreja Católica portuguesa, constituindo, tal como refereo relatório da Comissão Independente “estes apenas uma parte de um todo de expressão bastante mais significativa, (o que) permite concluir pela importância da criação de uma estrutura semelhante à da Comissão Independente, com novos membros, bem mais alargada e com outros meios de intervenção, com vista a estudar a situação dos abusos sexuais de crianças em geral, na comunidade”.

Os Estados têm o dever jurídico de prevenir, proteger, investigar, julgar, punir e reparar violações de direitos humanos, ainda que, por vezes, já não seja possível o procedimento criminal ou a reparação das vítimas nesse contexto.

Porque é verdade que a reparação deve ser feita pelo indivíduo que cometeu concretamente o crime, também é verdade que a violação de direitos humanos pode ser concretizada por instituições ou mesmo por Estados: veja-se o exemplo paradigmático dos crimes sexuais como armas de guerra em conflitos armados. E, se nestes ultimos casos verificamos um marco importante, com uma decisão do Comitê Contra a Tortura da ONU, condenando a Bósnia em caso de violência sexual em contexto de guerra, permitindo a condenação do Estado em si, e não somente do indivíduo e da própria reparação, deverá qualquer  Estado, através de Comissão própria para o efeito estar preparado com mecanismos eficazes de reparação nestes casos concretos, em defesa dos direitos humanos e da proteção da vítima.

O flagelo dos abusos sexuais contra menores deve convocar de forma co-responsabilizada e partilhada todos os atores sociais.

Nestes termos, a abaixo assinada Deputada Única do PESSOAS-ANIMAIS-NATUREZA, ao abrigo das disposições constitucionais e regimentais aplicáveis, propõe que a Assembleia da República adopte a seguinte Resolução:

A Assembleia da República resolve, nos termos do n.º 5 do artigo 166.º da Constituição da República Portuguesa, recomendar, tendo em vista a salvaguarda dos direitos humanos das crianças e jovens:

  1. A  revisão e renegociação da Concordata celebrada entre a Santa Sé e a República Portuguesa, com vista à garantia dos direitos humanos, em particular dos Direitos da Criança, revendo e prevendo, entre outras matérias, a questão do segredo de confissão, nomeadamente quando estão em causa crimes de abuso sexual de menores por membros da Igreja ou a ela ligados.
  2. Que o Governo promova a criação de uma Comissão Independente semelhante à criada para o “Estudo dos Abusos Sexuais de Crianças na Igreja Católica Portuguesa”, com escopo mais alargado, com vista a analisar a situação dos abusos sexuais de crianças na comunidade, e com  meios de intervenção, em estreita ligação ao Ministério da Justiça e demais entidades públicas sobre quem venha a recair a responsabilidade do prosseguimento da investigação.
  3. A criação de uma Comissão de Reparação, com vista a estudar e implementar medidas de reparação às vítimas de crimes sexuais, que vejam o seu direito à reparação e indemnização prejudicado por, por algum motivo, nomeadamente por impossibilidade de prossecução do procedimento criminal correspondente por efeitos da prescrição.

Assembleia da República, Palácio de São Bento, 09 de Março de 2023

A Deputada,

Inês de Sousa Real


[1] Microsoft Word – RELATORIO Final (1)_SUMARIO.docx (rtp.pt)

[2] Indemnizações, pedidos de desculpa e o tabu do segredo da confissão: a reação da Igreja em três países após a divulgação de abusos sexuais – Observador

[3] Idem