A folha e a floresta

Opinião de Artur Jorge Alfama . Auditor financeiro . Membro da Comissão Política Nacional do Pessoas-Animais-Natureza (PAN) . Deputado eleito pelo PAN na Assembleia Municipal de Almada

"O caos gerado pela Covid-19 tem ainda outras implicações: 2020 trazia a árdua conquista de três conferências absolutamente fundamentais para o combate às alterações climáticas."

Na semana em que nos EUA o nervosismo dos investidores levou ao registo de quebras históricas – havendo quem estime em 4 biliões de dólares (4.000.000.000.000 USD) as perdas para a economia norte-americana em resultado do “tsunami” que se aproxima -, chegou a vez de ser declarado o estado de emergência na economia da UE. Ursula von der Leyen não poderia ter seguido um caminho muito diferente, sob pena de agravar um risco sistémico, que desta vez não afecta (apenas) o sector financeiro mas toda a economia e, com ela, a vida de milhões de pessoas, com a OIT a prever uma inevitável perda de 25 milhões de empregos após o restabelecimento de alguma normalidade (fala-se já numa nova pandemia no final deste ano).

António Costa apressou-se (e bem) a comunicar as medidas de apoio à economia e, consciente de que, tal como nos EUA, será impossível ao Estado salvar todas as empresas, veio já deixar a ideia de que as mais frágeis serão sacrificadas. Num contexto de desregulação orçamental, países como Portugal, Itália ou Grécia, com dívidas públicas elevadas, são inevitavelmente convidados a sobreviver com mais endividamento. Resta agora saber se a UE vai intermediar os novos financiamentos, via Eurobonds, ou se vai abandonar à sua sorte economias frágeis e com dívidas astronómicas, como a portuguesa e a grega.

A escolha é económica, mas também política, e dirá muito da robustez presente dos fundamentos da UE, da sua sobrevivência como bloco e, com ela, da resiliência dos regimes democráticos, muito dependentes da sua maturidade (é aqui que perdemos a companhia da Grécia). Não duvido que os países comunitários do norte da Europa, França e Alemanha estarão um pouco fartos de ter de estender a mão aos “pobrezinhos do sul”, ainda para mais num inédito cenário de forte recessão global onde todos são afectados e em que o populismo ganha terreno no combate político interno, deixando os decisores reféns não tanto da racionalidade das suas escolhas mas sobretudo das consequências das mesmas através do poder que lhes é conferido para a sua implementação (leia-se o voto, em contexto democrático). 

A alternativa, deixar que procuremos financiamento por nossa conta, levará seguramente à necessidade de um novo resgate no curto prazo (acreditando logicamente na sobrevivência do sistema económico-financeiro actual). Os juros da dívida já dispararam, não antevendo facilidades no cumprimento do serviço de pagamento, agravadas pela necessidade de incorrer em nova dívida, num contexto especulativo onde a DBRS já colocou o nosso rating nas mãos da crise e da nossa capacidade, historicamente medíocre, de lhe darmos a volta.

Mas o caos gerado pela Covid-19 tem ainda outras implicações: 2020 trazia a árdua conquista de três conferências absolutamente fundamentais para o combate às alterações climáticas (Oceanos – Lisboa e Conservação da Natureza – Marselha, ambas em Junho; e Biodiversidade – Kunming em Outubro). A Conferência dos Oceanos criava-me particulares expectativas.

Em cima da mesa estaria, entre outros temas, a histórica regulamentação da actividade económica em águas internacionais, território sem lei, no mais poderoso sumidouro de carbono do nosso planeta: o oceano. A sobrepesca e a mineração profunda ameaçam de forma inédita o já frágil equilíbrio dos nossos oceanos, cada vez com menor capacidade no resgate de carbono, acidificados, inundados de plástico, com a criação crescente de zonas mortas. Com os sumidouros de carbono ameaçados, a cadeia de fenómenos resultantes das alterações climáticas irá intensificar-se fora de qualquer modelo previsional matemático, o pergelissolo derreterá com muito maior rapidez, exponenciada pela libertação das bolsas de metano (há quem estime o CO2 potencialmente retido em 280 gigatoneladas). E nem vou falar dos vírus que se podem libertar no decurso deste processo, com os quais a espécie humana nunca conviveu.

Que no fim do dia ninguém esqueça que a emergência climática não se alterou e que o actual cenário, de crise económica, dará força aos intentos predatórios e antropocêntricos vocacionados para a exploração desregulamentada dos ecossistemas. Apenas uma visão holística de todas estas crises e emergências nos poderá pôr a salvo. Infelizmente, vejo a maioria das pessoas preocupada com a folha, muitas com o ramo, algumas com a árvore. Já com a floresta, parece não haver ninguém muito preocupado.