Os recentes escândalos associados a abusos praticados por eclesiásticos na Igreja Católica tem chocado Portugal e o mundo. Não são novos e repetem-se em vários locais de forma sistemática. O seu impacto é tal que em vários países se formam comissões e abrem-se inquéritos.
Espanha regista, até agora, 910 casos e 1741 vítimas conhecidas de um número
potencialmente maior.
Em França, entre os anos 1950 e 2020, 216 mil crianças foram vítimas de abuso com idades entre os 10 e 13 anos. Mas o assombro é maior, o número de abusadores conta-se entre os 2900 e os 3200, sendo esta a estimativa do relatório multidisciplinar que conclui que a Igreja não só não foi capaz de prevenir o abuso, como expôs, com conhecimento de ocorrências, crianças em contacto com predadores sexuais.
As vítimas foram consecutivamente ignoradas e silenciadas, até usufruírem de apoio para revelarem os crimes cruéis a que foram sujeitas.
Casos denunciados na Irlanda, Canadá, Austrália, Alemanha, Chile, Polônia e Estados Unidos levaram o Papa Francisco a aprovar, em 2019, três documentos que obrigam a denúncia de casos de abuso no seio da igreja.
Em Portugal, o que nos revela o Relatório da Comissão Independente multidisciplinar que laborou um ano, integrando profissionais de reconhecido mérito?
De destacar que foram estabelecidos inúmeros contactos com estruturas da Igreja Católica e da sociedade civil, com destaque na área da protecção e intervenção em vítimas menores e adultos.
O relatório validou 512 testemunhos, incluindo açorianos, extrapolando para, pelo menos, 4.815 vítimas. Vinte e cinco casos foram enviados ao Ministério Público, mas a maior parte já prescreveu e são a “ponta do Iceberg”.
De realçar que investiu numa análise de relatos individuais através dos testemunhos das vítimas que foram sujeitas a reviver acontecimentos e experiências traumáticas, encorajadas a exporem-se depois de um silêncio de anos, por sentimentos de medo, vergonha e de culpa que não tinham.
Recordaram modalidades de abuso violentas como o sexo anal ou sexo oral, a masturbação, práticas mais difíceis de dissimular até modalidades mais fugazes e fáceis de esconder, ainda que não menos invasivas, sejam elas o toque em zonas erógenas, ou ainda, visualização de filmes pornográficos infantis.
O abusador, esse, ou não dizia nada para justificar o acto, potenciando uma demonstração de poder sobre a vítima ou justificava-a como um “desígnio divino”.
A manipulação de fragilidades era comum, fossem emocionais, familiares, económicas e até espirituais com a alegação da necessidade de uma «purificação» da vítima.
Normalmente, não ocorria castigo, mas recompensa com pequenos presentes envenenados como objectos cobiçados por crianças que viviam em privação extrema. Em casos relatados por terceiros registaram-se 7 casos de suicídio consumado, 21,6% casos de lesões físicas e um número elevado de alterações emocionais.
À pergunta “O que poderia fazer a Igreja para reparar o sucedido?» A maioria referiu-se a pedido público de perdão por parte da Igreja Católica Portuguesa às vítimas a que acrescentam o desejo de compromisso de respostas futuras de prevenção e intervenção adequadas.
Vergonhosamente, a comissão denota “distanciamento e alheamento” do topo da hierarquia católica relativamente aos abusos, contrastando com gravidade dos testemunhos e com recusa em depor por dois dos bispos.
Em Portugal, as reacções por parte dos responsáveis máximos da igreja foram dúbias e quase insultuosas. O cardeal-patriarca de Lisboa afirmou que faltam factos na lista de alegados abusadores no ativo que permitam que sejam já expulsos da Igreja. Nas mãos até podem ter os nomes, mas sem factos, alega o Cardeal Patriarca de Lisboa, por agora há pouco a fazer.
Este facto é negado pelo próprio relatório que foi acompanhado por uma lista de nomes e factos concretos relativamente aos abusos. É também garantido que os bispos não só têm poder de actuar, como são aconselhados a fazê-lo pelo próprio manual de instruções que o Vaticano divulgou em 2020.
Aliás, são vários os padres que já foram suspensos por bispos portugueses por situações menos graves.
Os Bispos de Angra e de Beja estão a dar uma “chapada de luva branca” ao Cardeal Patriarca ao afastarem, já, alguns dos padres acusados.
O pedido de desculpas parece que será substituído por um memorial de perdão às vítimas para marcar mais uma grande obra edificada pela igreja e Manuel Clemente alega que indemnizações seriam um insulto às vítimas, afastando uma solução usada noutros países.
Apesar do relatório não ser uma investigação, é fundamental afastar os acusados abusadores das suas funções para averiguação. A suspensão não é uma condenação, mas há probabilidade destas pessoas repetirem o comportamento, até porque há indivíduos acusados de abusos a crianças diferentes.
A Concordata entre o Estado português e a Santa Sé que reconhece a personalidade jurídica da Igreja Católica e da Conferência Episcopal é um articulado e cabal prova da profundidade das relações entre a Igreja e o Estado laico português, assim como, da inegável importância da igreja católica na edificação da cultura nacional.
Apenas com muita má-fé se poderia negar o legado daqueles que prosseguiram a missão cristã, ou seja, os verdadeiros cristãos.
Temos vários exemplos da caridade cristã que remontam à época medieval e que conseguiram fazer face, através da assistência aos doentes e aos mais desprotegidos, a várias epidemias, como aquela que sagrou entre nós. Ofereceu os primeiros hospitais na Europa à Cristandade e outros centros assistenciais de que Portugal e os Açores beneficiaram. Estamos bem cientes do legado da igreja católica.
A intenção perniciosa de destruir a relação das raízes conjuntas que enlaçam a construção da nossa história com a da igreja pelo exterior, não desacredita tanto uma instituição, que deseja ser respeitada, como a desonra interna e autofágica a que se assiste com os actuais escândalos.
Os crimes cometidos por membros da igreja, predadores quando deviam ser protectores, foram-no em espaços sagrados e nos quais se pressupõe encontrar conforto e confiança – sacristias, altares, confessionários, espaços de retiro, reclusão, isolamento e dormida das crianças em instituições de acolhimento, ou seminários, acampamentos de escuteiros e casas paroquiais. Eram espaços de abrigo que, para muitos, se transmutaram em espaços de temor.
Os depoimentos testemunham o clima emocional de terror, uma verdadeira atitude de «banalidade do mal». A luta contra esta banalização no seio da própria igreja será uma Cruzada que terá de encetar nos seus territórios mais profundos e negros para que a confiança possa ser, eventualmente, restaurada.
A igreja deve dar seguimento ao cumprimento do conceito de «tolerância zero» proposto pelo Papa Francisco. Instituir o dever moral de denúncia e colaboração com o Ministério Público em casos de alegados crimes de abuso sexual.
Quanto ao Estado português, apesar da Ministra da Justiça ter recebido a Comissão, espera-se, agora, uma acção mais musculada, nomeadamente por parte do Ministério Público, pois detém a titularidade exclusiva tanto da ação penal, como da direção da investigação criminal para dar andamento aos casos que foram encaminhados, já que, em muitos deles, os abusadores ainda são vivos e exercem funções. Aos olhos da lei, são cidadãos e não corpos celestes divinais acima do código penal português.
*Baseado na Declaração Política lida pelo Deputado Pedro Neves em Plenário a 9 de março