Exposição de Motivos
O instituto da indignidade sucessória, previsto nos artigos 2034.º e seguintes do Código Civil, estabelece que são causas de incapacidade sucessória a condenação por atos praticados contra a vida do autor da sucessão e certos familiares próximos, bem como contra o património moral dessas mesmas pessoas. Assim, embora no direito sucessório a regra seja a da capacidade sucessória, o mencionado regime determina que o agressor perde esta capacidade que originalmente lhe era reconhecida, independentemente da vontade da vítima, dando-se, pois, uma situação em que, conforme vem afirmando alguma jurisprudência, de forma não-automática, o interesse público se sobrepõe à vontade privada e em que a lei não suporta a transmissão beneficente.
Este é, pois, seguindo Pires de Lima[1], um instituto que tem como objeto central a proteção da vontade presumida do autor da sucessão e que atende à gravidade do crime e à relevância/censurabilidade social que lhe está associada.
De acordo com Pamplona Corte-Real[2] e Jorge Duarte Cordeiro[3], estando nós perante um regime excecional de carácter sancionatório ou de caráter “quase penal”, que impõe uma pena civil, existe uma estreita e íntima ligação deste regime ao princípio da legalidade, que determina o caráter taxativo do elenco consagrado no artigo 2034.º do Código Civil e que impede o recurso à analogia para integrar causas nele não previstas.
Embora este entendimento não seja isento de divergências doutrinárias, a verdade é que tem levado a que não sejam abrangidos pelo instituto da indignidade sucessória pessoas condenadas por crimes de ofensa à integridade física, de violência doméstica ou contra a liberdade e autodeterminação sexual do autor da sucessão ou seus familiares próximos.
Tal significa que, pelos termos estreitos em que está delineado, este instituto não está a proteger a vontade do autor da sucessão em situações em que existem crimes graves e com forte censurabilidade social, perpetuando, assim, uma injustiça quanto às vítimas e apresentando uma injustificada tolerância para com o autor do crime. Em casos de crimes contra pessoas mais vulneráveis, como as pessoas idosas, que não originando a morte a podem apressar – como os de ofensa à integridade física, de exposição ou abandono ou de violação da obrigação de alimentos -, parece que uma tal estreiteza deste instituto poderá levar a que, em última análise, se considere que existe até um verdadeiro convite à prática do crime, que premiará o seu autor com a transmissão beneficente.
É certo que o entendimento feito por alguma jurisprudência tem permitido abranger casos como os mencionados designadamente no âmbito da figura do abuso de direito, prevista no âmbito do artigo 334.º do Código Civil, por considerar que o reconhecimento de capacidade sucessória nestes casos seria algo intolerável para os bons costumes e o fim económico e social do direito sucessório; contudo, resulta evidente que, em nome da segurança jurídica e da proteção da vítima, tem de evitar-se que os casos abrangidos estejam à mercê da bondade ou da amplitude de interpretações jurisprudenciais.
Conforme lembrou o Supremo Tribunal de Justiça[4], “o texto do art.2034º (…) é absolutamente claro: o legislador disse o que quis dizer, apenas o que quis dizer e disse tudo o que quis dizer. E disse-o de uma forma incontroversa, por contraponto aliás com o que veio a dizer um pouco mais à frente, para a deserdação, no art.2166º abrindo ao autor da sucessão as portas da sua própria vontade anti-sucessória”, pelo que se afigura como necessário revisitar o regime da indignidade sucessória.
É ainda verdade que a última alteração a este regime, operada Lei n.º 82/2014, de 30 de Dezembro, na sequência de um alerta feito pela UMAR – União de Mulheres Alternativa e Resposta e de iniciativas legislativas apresentadas por PS, PSD, CDS-PP e BE, trouxe melhorias importantes, tais como a criação, no âmbito do Código Penal, da pena acessória de declaração de indignidade sucessória, desta feita, a sentença que condenar autor ou cúmplice de crime de homicídio doloso, ou esclarecimento de que, no caso de o único herdeiro ser o sucessor afetado pela indignidade, incumbirá ao Ministério Público intentar a ação destinada a obter a declaração de indignidade. Contudo, o PAN entende que, volvidos 8 anos desde a aprovação destas alterações, é necessário revisitar, atualizar e alargar o regime da indignidade sucessória consagrado no Código Civil e no Código Penal, pelo que com a presente iniciativa propõem-se um conjunto de duas alterações a este regime.
Por um lado, propõe-se a inclusão no elenco das causas de indignidade sucessória, da condenação pelo crime de ofensa à integridade física (ainda que por negligência), de violência doméstica, contra a liberdade e autodeterminação sexual, de exposição ou abandono ou violação da obrigação de alimentos, praticados contra o autor da sucessão ou um seu familiar próximo. Uma tal alteração protegeria as vítimas e a sua vontade sucessória face a injustiças, traria uma maior certeza e segurança jurídica, evitaria situações intoleráveis para os bons costumes e os fins do direito sucessório e garantiria um regime de indignidade sucessória conforme com a censurabilidade social associada aos crimes que pretendemos incluir com esta alteração e dissuasor da prática de tais crimes.
As soluções propostas, ao não tocarem no essencial da estrutura deste regime, são justas e equilibradas e conformes à Constituição, uma vez que não impõe uma consequência automática subjacente à condenação pelos crimes identificados e exigem, sempre, um juízo de culpa, necessidade e proporcionalidade de um tribunal para que haja a declaração da indignidade sucessória.
Por outro lado, pretende-se suprimir a referência feita no âmbito do regime da indignidade sucessória aos adotantes e adotados, pondo-se fim a distinção relativamente aos ascendentes e descendentes, uma vez que tal se afigura como desajustado à luz do atual quadro jurídico que reconhece os mesmos direitos e garantias a ascendentes e adotantes e a descendentes e adotados.
Nestes termos, a abaixo assinada Deputada Única do PESSOAS-ANIMAIS-NATUREZA, ao abrigo das disposições constitucionais e regimentais aplicáveis, apresenta o seguinte Projeto de Lei:
Artigo 1.º
Objeto
A presente lei procede à alteração do:
- Código Civil, aprovado em anexo ao Decreto-Lei n.º 47 344, de 25 de novembro de 1966;
- Código Penal, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 400/82, de 23 de setembro.
Artigo 2.º
Alteração ao Código Civil
São alterados os artigos 2034.º, 2035.º e 2036.º do Código Civil, que passa a ter a seguinte redação:
«Artigo 2034.º
[…]
- O condenado como autor ou cúmplice de homicídio doloso, ainda que não consumado, contra o autor da sucessão ou contra o seu cônjuge, descendente ou ascendente, qualquer que seja a natureza do vínculo de constituição da filiação;
- b) O condenado por ofensa à integridade física, por violência doméstica, por crime contra a liberdade e autodeterminação sexual, por exposição ou abandono ou por violação da obrigação de alimentos, contra as mesmas pessoas referidas na alínea anterior;
- O condenado por denúncia caluniosa ou falso testemunho contra as mesmas pessoas referidas na alínea a), relativamente a crime a que corresponda pena de prisão superior a dois anos, qualquer que seja a sua natureza;
- d) (anterior alínea c));
- (anterior alínea d)).
Artigo 2035.º
[…]
1 – A condenação a que se referem as alíneas a), b), e c) do artigo anterior pode ser posterior à abertura da sucessão, mas só o crime anterior releva para o efeito.
2 – […].
Artigo 2036.º
[…]
1 – A acção destinada a obter a declaração de indignidade pode ser intentada dentro do prazo de dois anos a contar da abertura da sucessão, ou dentro de um ano a contar, quer da condenação pelos crimes que a determinam, quer do conhecimento das causas de indignidade previstas nas alíneas d) e e) do artigo 2034.º.
2 – […].
3 – Caso a indignidade sucessória não tenha sido declarada na sentença penal, a condenação a que se refere a alínea a) e b) do artigo 2034.º é obrigatoriamente comunicada ao Ministério Público para efeitos do disposto no número anterior.»
Artigo 3.º
Alteração ao Código Penal
São alterados os artigos 69.º-A e 152.º do Código Penal, que passa a ter a seguinte redação:
«Artigo 69.º-A
A sentença que condenar:
- autor ou cúmplice de crime de homicídio doloso, ainda que não consumado, contra o autor da sucessão ou contra o seu cônjuge, descendente ou ascendente; ou
- autor de crime de ofensa à integridade física, ainda que por negligência, de violência doméstica, contra a liberdade e autodeterminação sexual, de exposição ou abandono ou de violação da obrigação de alimentos, contra as mesmas pessoas referidas na alínea anterior.
pode declarar a indignidade sucessória do condenado, nos termos e para os efeitos previstos nas alíneas a) ou d) do artigo 2034.º e no artigo 2037.º do Código Civil, sem prejuízo do disposto no artigo 2036.º do mesmo Código.
Artigo 152.º
[…]
1 – […]:
- […];
- […];
- […];
- […];
- […];
[…].
2 – […]:
- […];
- […];
[…].
3 – […]:
- […];
- […].
4 – Nos casos previstos nos números anteriores, incluindo aqueles em que couber pena mais grave por força de outra disposição legal, podem ser aplicadas ao arguido as penas acessórias de proibição de contacto com a vítima e de proibição de uso e porte de armas, pelo período de seis meses a cinco anos, e de obrigação de frequência de programas específicos de prevenção da violência doméstica, bem como a declaração de indignidade sucessória.
5 – […].
6 – […].»
Artigo 4.º
Entrada em vigor
A presente lei entra em vigor 30 dias após a sua publicação.
Assembleia da República, Palácio de São Bento, 26 de janeiro de 2023
A Deputada,
Inês de Sousa Real
[1] Pires de Lima e Antunes Varela, Noções fundamentais de Direito Civil, Vol. II, 5.ª edição, Coimbra Editora, 1962.
[2] Carlos Pamplona Corte-Real, Direito da Família e das Sucessões, Volume II – Sucessões, 2.ª edição, Edições Jurídicas, Lisboa, 1993, páginas 204 e seguintes.
[3] Jorge Duarte Pinheiro, O Direito das Sucessões Contemporâneo, 2.ª edição, AAFDL, 2017, páginas 195 a 197.
[4] Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 7 de Janeiro de 2010, Proc. n.º 104/07.9TBAMR.S.