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Tauromaquia ou a arte de torturar

A tauromaquia reveste-se de diversas formas de expressão e apresenta um vasto leque onde cabem vários costumes que, para quem é minimamente sensível ao sofrimento animal e às boas práticas para o seu bem-estar, é obrigado a olhar de soslaio e conduzido a desconfiar dos vários argumentos onde se refugiam os adeptos da sua continuidade.

Por um lado, a afición taurina ancora-se na premissa que a prática tauromáquica é uma tradição e, por isso, cultural e que cabe no domínio do empoderamento que a UNESCO concede, através da Convenção para a Salvaguarda do Património Cultural Imaterial, no domínio das artes de espetáculo ou eventos festivos e rituais que o
Estado tem de promover para salvaguardar, valorizando e fomentando a literacia e a transmissão geracional. Ou seja, pretende que a tauromaquia seja equivalente ao Fadoou ao Carnaval de Podence ou, ainda, ao Canto Polifónico Alentejano.

Ora, quando se inscreve uma prática numa lista de património imaterial é o mesmo que dizer que todos os recantos do país, sem excepção, a reconhecem como uma prática que enriquece o espólio cultural nacional ou mundial, como é o caso do Fado. O património imaterial não é estático. É mutável, tal como a própria natureza ou as várias idades dos homens, as marés ou uma paisagem que muda de indumentária a cada estação. É no intangível que cabem os rituais como o Candomblé, os cânticos ou danças como o Tango, uma reza, uma peregrinação, um poema ou o fabrico de uma guitarra portuguesa. E está sujeita à globalização, viaja com as comunidades. Quando
levo o Fado de Lisboa ao Rio de Janeiro ele é cantado de outra forma, transfigura-se. É entoado com uma melodia diferente. Por tal, tudo o que é imaterial não pode receber o selo de autenticidade, não se pode classificar, pode, sim, inserir-se numa lista inclusiva. E pode retirar-se, também.

É um processo criterioso e complexo, que carece de várias categorias inerentes à prática que, por muito que se queira impor por decreto, não podem ser forçadas na comunidade. Seria o mesmo que obrigar uma cidade do interior a festejar a Semana do Mar quando não tem as práticas inerentes que culturalmente a levam a ser celebrada
na Horta e formam a sua identidade.

Por outro lado, temos uma grande parcela da sociedade que conta, cada vez mais, com um maior número de vozes e movimentos em defesa do bem-estar dos animais que refutam uma visão utilitarista dos mesmos. Do lado da abolição estão fortes estandartes que se prendem, principalmente, com os fundamentos das alterações ao Código Civil pelas quais os animais deixaram de ser considerados coisas para serem reconhecidos seres dotados de sensibilidade aos olhos da lei e, como tal, sujeitos a proteção jurídica. No seio da especialidade jurídica em direito dos animais torna-se evidente que deixa de ser possível haver espetáculos baseados em sofrimento de seres vivos sensíveis.

Faz todo o sentido, como tal, afirmar que as normas legais que oponham a estes antecedentes devem ser revogadas. É óbvio que o caminho para o fim da tauromaquia está aberto. Em todo mundo, onde era suposto ser tradição secular, a tauromaquia é contestada. Por acção judicial no México e Venezuela, por projecto de lei na Colômbia, por retirada da lista do património nacional em França. Nos Açores, em contraciclo, o governo patrocina práticas como a “espera de gado infantil”, numa clara violação das determinações do Comité dos Direitos da Criança das Nações Unidas que recomenda a não participação ou assistência de menores a estes eventos.

É altura de se abandonar práticas que servem apenas a um punhado de interesses. Quanto aos adeptos, há formas de divertimento que não incluem espicaçar animais não humanos ou de expor a integridade física das crianças, estas, sim, o maior património da humanidade.