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Recomendação: Pela garantia de apoio às vítimas de violência doméstica que detenham animais de companhia

Pela garantia de apoio às vítimas de violência doméstica que detenham animais de companhia

A violência doméstica engloba todo o tipo de comportamentos criminosos que um agressor adota para controlar a sua vítima, sendo as mulheres as vítimas mais frequentes. Contudo, este tipo de violência, a maioria das vezes escondida, pode igualmente estender-se a outros membros do agregado familiar, incluindo as crianças, bem como atingir os  animais de companhia que residem no mesmo lar ou perto do agressor.

Vários estudos constatam que os maus-tratos infligidos a animais de companhia constituem um evidente sinal de alarme para a possibilidade de existir (ou de vir a existir) violência doméstica no seio familiar[1]. A coocorrência de violência doméstica e maus-tratos aos animais de companhia varia conforme os estudos, mas é assustadora, porquanto assenta numa correlação que pode variar entre 25 a 86%.[2]

Para além das agressões efetivas aos animais de companhia – que dependem de inúmeros fatores[3] – importa mencionar que os animais podem ser também alvo de ameaças que visam intimidar a vítima de violência doméstica[4]. Ambas as situações (agressão ou ameaça) inibem a vítima de abandonar o lar para não deixar  o animal de estimação para trás.

A maioria das casas-abrigo não prevêem o acolhimento e proteção do animal, situação para a qual diversas associações contra a violência doméstica já alertaram, tendo o Grupo Municipal do PAN incluído esta mesma medida na sua participação sobre o II Plano Municipal Prevenção e Combate à Violência contra as Mulheres, Violência Doméstica e de Género do Município de Lisboa 2019-2021, aquando da sua consulta pública.

Como se sabe, as crianças da família são frequentemente utilizadas no plano que inclui ameaça, chantagem e crueldade do agressor para com a vítima, estando comprovado que todas as crianças que vivem em contexto de violência doméstica têm o risco de desenvolver perturbações emocionais.[5]

As crianças com maior risco de dano emocional são as que são forçadas pelo agressor a agredir o seu animal de estimação e as que são agredidas por tentar defendê-lo[6]. Os traços psicopatológicos apresentados pelas crianças são variados e vão desde traços depressivos causados por uma identificação ao animal de estimação e/ou à incapacidade de o proteger, até à possibilidade de se tornarem elas próprias agressoras de animais, entre outros problemas como a insensibilidade à violência, ansiedade, apatia, maior propensão a fazer bullying, etc.[7].

Importa, pois, dar destaque aos estudos que encontraram uma correlação significativa entre a exposição de uma criança a um ambiente de violência doméstica e os maus-tratos da mesma a animais[8]. Aliás, ancorados na teoria da aprendizagem social, estudos empíricos revelam que o maior preditor de violência contra animais na idade adulta é a exposição a maus- tratos a animais enquanto criança por parte dos pais ou das mães.[9]

Também não se pode ignorar que distintas análises de sociólogos, psicólogos e criminologistas, nos últimos 25 anos, mostram que os perpetradores de crueldade animal frequentemente não limitam a sua ação a animais e muitos passaram a cometer atos de violência contra seres humanos. Um estudo realizado em 1997 pela Northeastern University e Massachusetts SPCA[10] demonstrou que quase 40% dos abusadores de animais cometeu crimes violentos contra pessoas.

De acordo com estudos avançados pela National Coalition on Violence Against Animals, 15% a 48% das mulheres adiam a sua saída de uma situação de abuso com receio pela segurança dos seus animais de companhia. A própria Direção-Geral da Saúde (DGS) no seu relatório sobre Violência Interpessoal, Abordagem, Diagnóstico e Intervenção nos Serviços de Saúde, datado de 2014, já identifica a crueldade contra animais como um potencial fator de risco.

Uma das perguntas que consta precisamente do questionário de avaliação do Relatório da DGS (Quadro 35) quanto à identificação do “tipo de violência” é se o agressor maltrata os animais de estimação da vítima, se ameaça fazer mal à vítima, aos seus filhos ou aos seus animais de estimação. Os animais aparecem ainda na “Roda do poder e do controlo” como forma de intimidação da vítima (Figura 5 do Relatório da DGS).

Também nos comportamentos de Stalking a DGS refere que comportamentos como o de deixar animais mortos em casa ou no carro da vítima estão presentes em cerca de metade das situações de assédio persistente (Quadro 21 do Relatório).

Quanto aos animais, seres vivos dotados de sensibilidade e com estatuto jurídico próprio, ao testemunharem agressões são sujeitos a elevados níveis de stress, podendo sentir tremores e medo, experienciar micção involuntária[11] e ter como principais reações tentar consolar a vítima, aproximando-se e mantendo-se junto dela, ou procurar dissuadir o agressor, atacando-o, e pondo em causa a sua integridade física ou mesmo a vida.

Um estudo elaborado por H.M.C. Munro de 1996 “(…) propõe a aplicação da sistemática adotada para o diagnóstico da Síndrome da Criança Espancada como um referencial norteador (para os animais). Denomina o trauma não-acidental em Medicina Veterinária como Síndrome do animal espancado, de forma análoga ao da criança e o caracteriza como um dos tipos de violência doméstica.”[12].

Por ser notória a estreita relação entre a violência doméstica e os maus-tratos a animais, ao penalizar os atos violentos infligidos a animais estamos também a  alargar a função preventiva das normas penais no que diz respeito à consumação de crimes de violência doméstica.

Os médicos-veterinários podem, por esta via, tornarem-se agentes na prevenção da violência doméstica, devendo ter por obrigação reportar às autoridades os casos de animais de estimação que apresentem ferimentos que dificilmente possam ser explicados por um acidente, como é, aliás, sugerido por vários autores.[13]

Em suma, se é certo e evidente que as vítimas de violência doméstica precisam de mais apoio e garantias por parte do Estado, certo é que os animais sujeitos a comportamentos violentos no seio familiar são esquecidos, o que culmina muitas vezes na sua morte (como sucedeu no mediático caso do homem que matou, esfolou e esquartejou o cão da ex-namorada), assim como o receio de retaliações ou comportamentos agressivos por parte do agressor leva a que as vítimas adiem os pedidos de ajuda ou, quando tal se mostre necessário, a sua saída de casa..[14]

Por tudo o exposto, e porque:

  1. A violência perpetrada contra os animais de estimação deve ser objeto de uma séria e cuidada análise, constituindo uma ferramenta essencial para todos os profissionais que lutam contra a violência doméstica;
  2. As vítimas que se encontram  na posição mais baixa da hierarquia familiar, como é o caso dos animais de estimação, não devem ficar fora do âmbito dos programas de prevenção e apoio;
  3. O abuso de animais é parte integrante da violência familiar com comprovadas derivações para as pessoas  do mesmo agregado;
  4. Os animais são seres sencientes, pelo que sentem stress, dor, angústia, medo e tristeza, devendo, por isso, ser protegidos dos agressores;
  5. Ao protegermos os animais de companhia estamos também a proteger o núcleo familiar vítima de violência.

Face ao exposto, vem o Grupo Municipal do PAN propor que a Assembleia Municipal de Lisboa na sua Sessão Ordinária de 22 de setembro de 2020, delibere recomendar à Câmara Municipal de Lisboa que diligencie pelo seguinte:

1 – Promover, por si ou em parceria com as entidades que gerem as casas-abrigo, de emergência ou transição, o acolhimento das vítimas conjuntamente com os animais de companhia que integram o núcleo familiar, dotando as casas abrigo e habitações atribuídas às vítimas/sobreviventes de condições para acolher os animais de companhia;

2  – Sempre que tal não seja manifestamente possível, que sejam criados procedimentos de forma a que as entidades que recebem vítimas de violência doméstica possam direcionar os animais para estruturas onde estes se encontrem devidamente protegidos do agressor (e.g. Casa dos Animais de Lisboa, Associações de Proteção Animal do Município, clínicas veterinárias, hotéis para animais, bolsa de famílias de acolhimento temporárias), com vista a acautelar que a vítima evite adiar a sua saída de casa por receio de deixar o animal de companhia para trás;

3 – Criação pela autarquia de um programa específico para  o apoio a crianças e jovens que residam em ambiente familiar em coocorrência de violência doméstica e crimes contra animais de companhia, de modo a proporcionar-lhes uma interação positiva com animais (e.g. terapias assistidas por animais, voluntariado supervisionado em associações de proteção animal, observação in situ de treino comportamental canino), fomentando uma aprendizagem baseada na negação da violência, dado que a relação positiva com o animal poderá ajudar a sanar os traumas causados pela exposição à violência e prevenir a instalação de quadros psicopatológicos graves (e.g. perturbação de personalidade anti-social), das quais a crueldade contra animais pode ser parte integrante.

4 – Incentivar a realização de estudos, junto de entidades ligadas à saúde mental (e.g. universidades de Psicologia, Ordem dos Psicólogos) que visem identificar variáveis psicológicas e sociodemográficas que possam ser preditoras de maior risco para as crianças – o elemento mais vulnerável do agregado familiar – desenvolverem perturbações emocionais.

5 – Implementar como um dos objetivos do programa municipal contra a violência doméstica a sinalização da presença de violência contra animais de estimação, como indicador e predictor da violência nas famílias, indo ao encontro das orientações da  DGS e tal como definido no Parecer da 6ª Comissão Permanente da AML votado por unanimidade de 25 de Julho de 2014[15];

6 – Promover ações de formação/sensibilização sobre maus-tratos a animais de companhia em contexto de  violência doméstica, para profissionais (de 1.ª e 2.ª linha) nas áreas da Segurança, Justiça, Habitação, Educação, Saúde, Ação social, Reabilitação, Emprego e Formação Profissional e Comunicação social, abrangendo profissionais da administração central e local.

Lisboa,  17 de setembro de 2020

O Grupo Municipal do
Pessoas – Animais – Natureza,

Miguel Santos – Inês de Sousa Real


[1] Para uma revisão ver por exemplo Newland, X., Boller, M., & Boller, E. (2019). Considering the relationship between domestic violence and pet abuse and its significance in the veterinary clinical and educational contexts. New Zealand veterinary journal, 67(2), 55-65.

[2] Monsalve, S., Ferreira, F., & Garcia, R. (2017). The connection between animal abuse and interpersonal violence: A review from the veterinary perspective. Research in veterinary science, 114, 18-26.

[3] Hartman, C. A., Hageman, T., Williams, J. H., & Ascione, F. R. (2018). Intimate partner violence and animal abuse in an immigrant-rich sample of mother–child dyads recruited from domestic violence programs. Journal of interpersonal violence, 33(6), 1030-1047.

[4] Newland, X., Boller, M., & Boller, E. (2019). Considering the relationship between domestic violence and pet abuse and its significance in the veterinary clinical and educational contexts. New Zealand veterinary journal, 67(2), 55-65.

[5] McDonald, S. E., Cody, A. M., Collins, E. A., Stim, H. T., Nicotera, N., Ascione, F. R., & Williams, J. H. (2018). Concomitant exposure to animal maltreatment and socioemotional adjustment among children exposed to intimate partner violence: A mixed methods study. Journal of Child & Adolescent Trauma, 11(3), 353-365.

McDonald, S. E., Collins, E. A., Nicotera, N., Hageman, T. O., Ascione, F. R., Williams, J. H., & Graham-Bermann, S. A. (2015). Children’s experiences of companion animal maltreatment in households characterized by intimate partner violence. Child abuse & neglect, 50, 116-127.

[6] McDonald, S. E., Cody, A. M., Collins, E. A., Stim, H. T., Nicotera, N., Ascione, F. R., & Williams, J. H. (2018). Concomitant exposure to animal maltreatment and socioemotional adjustment among children exposed to intimate partner violence: A mixed methods study. Journal of Child & Adolescent Trauma, 11(3), 353-365.

McDonald, S. E., Collins, E. A., Nicotera, N., Hageman, T. O., Ascione, F. R., Williams, J. H., & Graham-Bermann, S. A. (2015). Children’s experiences of companion animal maltreatment in households characterized by intimate partner violence. Child abuse & neglect, 50, 116-127.

[7] Para uma revisão ver Fischer, B. (Ed.). (2019). The Routledge Handbook of Animal Ethics. Routledge.

[8] e.g. Currie, C. L. (2006). Animal cruelty by children exposed to domestic violence. Child abuse & neglect, 30(4), 425-435.

[9] Baldry, A. C. (2003). Animal abuse and exposure to interparental violence in Italian youth. Journal of Interpersonal Violence, 18(3), 258-281.

[10] https://www.worldcat.org/title/cruelty-to-animals-and-other-crimes-a-study-by-the-mspca-and-northeastern-university/oclc/628263659

[11] https://canalcienciascriminais.jusbrasil.com.br/artigos/683343196/violencia-domestica-os-animais-tambem-sao-vitimas

[12] https://psicologiaanimal.com.br/a-crueldade-com-animais-e-indicador-de-violencia-domestica/

[13] e.g.Newland, X., Boller, M., & Boller, E. (2019). Considering the relationship between domestic violence and pet abuse and its significance in the veterinary clinical and educational contexts. New Zealand veterinary journal, 67(2), 55-65.

[14] https://www.jn.pt/justica/matou-esfolou-e-esquartejou-cao-da-ex-namorada-11653002.html

[15] A definição de violência no domicílio, como fenómeno que ocorre dentro de casa ou no âmbito da família, sendo mais abrangente que a definição de violência doméstica que se encontra vertida no artigo 152.0 do Código Penal, impacta, não obstante a limitação desta definição, de forma clara, nos sujeitos abrangidos no dito artigo do Código Penal, uma vez que a exposição a qualquer tipo de violência é ela própria, uma violência psicológica contra as pessoas. Assim, qualquer tipo de violência ocorrida no âmbito do Domus, nomeadamente a violência contra os animais domésticos – hoje criminalizada com penas até dois anos de prisão efectiva – deverá, como crime público que é, ser denunciada ao Ministério Público e sinalizada no âmbito do plano, uma ve± que estudos internacionais demonstram que pode ser utilizada cautelarmente como preditor das restantes formas de violência doméstica. Assim, esta comissão recomenda que sejam desenvolvidas nesta área específica e integrando o plano, em paralelo com as restantes medidas, acções de sensibilização e de formação com pessoas adaptadas a esta tarefa. Recomenda finalmente que seja realizado, decorrente da informação recolhida durante a execução do plano, um estudo específico sobre o impacto da violência sobre os animais domésticos na vida familiar e em populações específicas, nomeadamente nas crianças.